O uso de “todes” resolveria o quê?

Nos últimos dias, a discussão acerca da linguagem neutra ganhou destaque. Há quem defenda que seu uso promove inclusão, especialmente das pessoas não binárias — aquelas que não se identificam nem com o gênero feminino nem com o masculino. Nesse aspecto, não há divergência: todo o meu respeito às identidades e às formas de expressão de cada pessoa.

Mas, voltemos à língua portuguesa. É inegável que ela é viva e suscetível a transformações, acompanhando as mudanças sociais ao longo do tempo. Porém, é justamente este o ponto: a sociedade — profundamente desigual em termos de acesso à educação. Nesse contexto, não me parece inteligente impor uma alteração na língua. Imaginem o impacto dessa mudança para pessoas em situação de maior vulnerabilidade, que não tiveram oportunidade de estudo. Conseguirá a dona Maria, minha vizinha, aprender a empregar “ilu” e “dilu”? Ela certamente pode — e deve — respeitar pessoas não binárias. Mas será que conseguirá incorporar espontaneamente o “todes” ao seu vocabulário?

Sinceramente, a discussão parece-me fora de hora em relação às urgências sociais do país. Pergunto-me: se a intenção é incluir todos, todas e todes, por que não optar por expressões amplas e universalmente compreensíveis, como boa tarde a todas as pessoas?
Segundo o professor de Língua Portuguesa Pablo Jamilk, no livro Linguagem neutra de gênero, a palavra “todo” tem sua origem no latim, em um termo que designa “inteiro”. Dessa mesma raiz derivam “total”, “totalitário”, “totalidade”. Portanto, ao dizer “bom dia a todos”, não se pressupõe que o público seja masculino; emprega-se, na verdade, uma forma de neutralização: “Bom dia ao público todo”, “Bom dia ao público inteiro”. Ou – insisto – também é possível dizer “Bom dia a todas as pessoas.” Pois até onde eu sei, todos se reconhecem como pessoas. Ou seja, há total neutralização em pessoas. Não é?

Resta-me a dúvida: o propósito é, de fato, incluir ou apenas “lacrar” com o tema? Se a meta for inclusão, que se abra o diálogo e se reflita com profundidade. Todos merecem se sentir incluídos. Mas não podemos nos deixar levar por modismos. A língua portuguesa deve incluir, sim. Mas não deve estar à mercê de lacrações. Todos merecem respeito; inclusive a nossa língua.

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